Região e a ciência geográfica

A Geografia moderna, enquanto ciência surgida no século XIX, é fruto da realidade material e histórica de seu tempo. Diante daquilo que era considerado científico, os primeiros geógrafos – assim como tantos outros pensadores da época– procuraram validar seus estudos aos moldes das ciências naturais: o todo deveria ser fragmentado e estudado até a menor partícula, buscando, assim, as “Leis Gerais” que regem o universo. Entretanto, tal método carrega, em si, um problema: quando se fragmenta a realidade, perde-se a visão do todo, resultando numa visão deturpada da realidade. Diante disto, fica o questionamento de como devemos traduzir essa ciência de modo que estudantes do Ensino Básico consigam formular conceitos – como o de Região – nas aulas de Geografia. Este texto faz parte das publicações sobre conceitos geográficos.

GEOGRAFIA SISTEMÁTICA OU REGIONAL

De acordo com Hartshorne (p. 116, 1978), os primeiros geógrafos se questionaram em relação a qual método garantiria à Geografia o status de ciência e permitiria a melhor compreensão espacial. De um lado havia a proposta da Geografia Sistêmica de buscar compreender e descrever as “Leis Gerais” do planeta como um todo, do outro, a Geografia Regional propôs aplicar essas leis e estudar as particularidades.

Região e a ciência geográfica

Ao levar em consideração o fenômeno humano, devemos nos questionar: como procurar Leis Naturais diante da complexidade da ação antrópica? Afinal, como fragmentar o espaço geográfico se o resultante será tão variado quanto podem ser as intervenções humanas. Tal reflexão implica diretamente na compreensão de que as especificidades se sobrepõem à generalização espacial, dificultando a elaboração dessas leis que são tão caras as ciências naturais. Ao mesmo tempo, não se deve abandonar a busca de tais elementos, porque é a partir dela que se inicia a leitura regional, isto é, não se pode perder do horizonte a necessidade de integrar e descrever os complexos fenômenos espaciais.

Fenômenos inter-relacionados

Continuando, Heartshorne (p. 121, 1978) pondera que é importante ter clareza de que os fenômenos podem ser inter-relacionados em sua origem ou desenvolvimento, mas também pode ser completamente independente e não integrado a outras regiões, pois “algumas áreas são mais auto suficientes ou mais isolados, ao passo que outras se revelam mais dependentes de uma área externa” (HEARTSHORNE, p. 122, 1978). Assim sendo, parte-se dos estudos tópicos e generalistas produzidos pela Geografia Sistemática em direção a grupos menores e menos complexos de elementos, embora intimamente ligados. Para o autor, deve-se ter em mente que ambas as formas são complementares e não concorrentes, principalmente por conta do elemento humano que permeia a ciência.

Além do mais, não se pode perder do horizonte epistemológico que a totalidade dos fenômenos é intangível, isto é, a nossa capacidade de compreender a complexidade da realidade é limitada e esforços nesse sentido produziria uma enorme quantidade de dados que seria inviável armazenar, apurar e atualizar adequadamente. Então, propõe o autor (HEARTSHORNE, p. 127, 1978), devemos construir a Geografia de um lugar com o máximo de conhecimento desejado sobre esse recorte espacial. Desta maneira, o Método Regional agrega na compreensão desses espaços ao dividi-lo segundo critérios de interesse, buscando e identificando caracteres comuns, permitindo assim a sua classificação e percepção das interconexões com outros espaços.

GEOGRAFIA REGIONAL NA EDUCAÇÃO BÁSICA

Diante disto, como fica o ensino de Geografia na Educação Básica? É possível propor estudos Regionais que não sejam meramente descritivos? Quais seriam as estratégias mais eficientes nesse processo de construção conceitual?

Primeiramente, devemos compreender a realidade da geografia no Ensino Básico. Historicamente, segundo Lacoste (p. 21, 1988), a Geografia ensinada nas escolas tende a ser intencionalmente desinteressante e meramente descritiva. Enquanto isso, é possível observar que os Estados e as elites que a compõe exploram o valor dessa ciência na busca de manter o controle sobre as pessoas e territórios. Pouco importa se é uma ciência, sua necessidade e uso é indiscutível nas relações de poder, observa Lacoste (p. 22, 1988).

Quando se restringe o estudo sobre região a mera memorização, o estudante se desinteressa. Não há internalização do saber, tão pouco reflexão crítica sobre esse conhecimento. Ao distanciar o objeto (a Geografia) do sujeito (o estudante), torna-se uma ciência inútil e alienante. Sendo de extrema importância às elites em todo mundo, por que haveria de ser inútil aos estudantes do ensino médio? Justamente para a manutenção do status quo, isto é, a dominação dos sujeitados.

Consequentemente, o resultado se expressa na dificuldade de formular conceitos, isto é, a capacidade de representar, mentalmente, a realidade. Perde-se, então, o potencial de compreender o real, porque o espaço vivido só pode ser percebido por meio da interpretação dos dados sensoriais, mediado pela nossa capacidade de reconhecer os espaços vividos. Sem a formulação racional de conceitos, resta apenas a experiência imediata do senso comum.

IMPACTO DA GEOGRAFIA SISTÊMICA NO ENSINO BÁSICO

Pesquisando a formulação de conceitos geográficos no Ensino Básico, Cavalcanti (p. 51, 2016) percebeu que tanto os estudantes como os professores apresentaram dificuldade no processo de elaboração e compreensão. Em relação a Região, os alunos do Ensino Fundamental fizeram a aproximação ao conceito por meio de exemplos, sem conseguir elaborar, de fato, as características desse elemento. Em relação as professoras desses alunos, as respostas não foram muito diferentes, restringindo o conceito de Região a espaços precisos, genéricos e estáticos (CAVALCANTI, p. 75, 2016).

Embora estudo sobre Região esteja previsto nos programas do Ensino Básico, a forma de abordar a questão varia de acordo com o referencial teórico adotado. Evidencia-se, então, a disputa paradigmática em torno do conceito que perpassa desde o determinismo geográfico até a crítica marxista da homogeneização dos espaços (CAVALCANTI, p. 104, 2016). Entre esses paradigmas está o senso comum do estudante e do professor, que na prática norteia os processos de ensino e aprendizagem no Ensino Básico.

Sendo o senso comum a base comum compartilhada entre educadores e educandos, acerta Boaventura quando sugere que as ciências, de um modo geral, se esforcem para transformar o conhecimento científico num Novo Senso Comum (SANTOS, p. 107). Viabiliza, desta forma, o conhecimento como caminho emancipatório. A exemplo temos os estudos sobre Região: se a proposta de Hartshorne alcançasse os estudantes como Novo Senso Comum proposto por Boaventura, os potenciais de aprendizagem seriam perceptíveis em novas pesquisas como a de Cavalcanti.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, correlacionar as pesquisas de Cavalcanti com as proposições de Heartshorne pode levar a interpretação de que falta articular a Geografia Sistemática com a Regional. Como resultado, a transmissão dos conceitos geográficos básicos se torna prejudicada. Resulta, então na alienação do sujeito e a sujeição àqueles que de fato compreendem o real da Geografia. Retomando Lacoste, pouco importa se a Geografia será considerada ciência, sua importância é inegável e sua utilização evidente.

De fato, o que precisamos é transcender a visão de que é ciência apenas aquilo que se propõe a buscar leis universais e retomar os estudos holísticos, ou seja, retomar a visão do todo. Além disso, de nada adianta esse saber ficar restrito ao campo acadêmico. É preciso tornar essas reflexões o Novo Senso Comum

REFERENCIAS

CAVALCANTI, Lana de Souza. Geografia, escola e construção de conhecimentos. 1º edição. Campinas: Papirus. 2016.

HEARTSHORNE, Richard. Propósito e Natureza da Geografia. 2º edição. São Paulo: Edusp. 1978.

LACOSTE, Yves. A Geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. 9º Edição. Campinas: Papirus. 1988. SANTOS, Boaventura de Souza. A crítica da razão indolente. 8º edição. São Paulo: Cortez. 2017.